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Psicoterapia corporal

Carlos Eduardo Melo Oliveira

Uma introdução às principais concepções das distintas abordagens

1 – Introdução:

A psicoterapia corporal ou somática emergiu da obra  de Wilhelm Reich, depois de seu afastamento do movimento psicanalítico. Seu desenvolvimento tem como suporte teórico-filosófico, além das idéias oriundas da psicanálise, a fenomenologia e o existencialismo, interagindo na sua proposta de prática clínica com a gestalt-terapia, o psicodrama e as abordagens reunidas sob a denominação de “movimento pelo potencial humano”.

No interior da fenomenologia e influenciado pelo gestaltismo, Merleau-Ponty, ocupando a cátedra de Bergson, anuncia uma concepção  que caracteriza todo o espectro da psicoterapia somática:

“Não é preciso dizer que nosso corpo está no espaço, nem está no tempo. Ele habita o espaço e o tempo (…) Eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou melhor, eu sou meu corpo”.

A psicoterapia somática propõe, através do contato com o corpo enquanto organismo vivo e expressivo, re-vivências de caráter emocional-afetivo, acompanhadas de uma tomada de consciência capaz de dar suporte à reestruturação do vivido, processo no qual o papel da relação terapêutica é fundamental.

É um trabalho no campo somato-afetivo, a partir da prática e da compreensão do que se sente e vive. Seu campo divide-se hoje em uma série de distintas vertentes: a orgonomia reichiana, a vegetoterapia-caracteroanalítica de Federico Navarro, a análise bioenergética de Alexander Lowen, a biossíntese de David Boadella, a psicologia biodinâmica de Gerda Boyesen e a psicologia formativa de Stanley Keleman, entre outros. Apesar das diferenças entre estas abordagens, suas concepções a respeito da interação entre os aspectos fisiológicos e orgânicos e os processos emocionais, afetivos e psíquicos, permitem a caracterização da psicoterapia corporal.

2 – As abordagens reichianas:

2.1 – A orgonoterapia:

Reich, muito influenciado pela perspectiva bergsoniana, desenvolve uma concepção organicista e não mecanicista dos seres vivos. A crença na vida como força, atividade criadora e criativa, vai impedi-lo de aceitar o conceito de pulsão de morte como um segundo fator explicativo da psique humana.

Reich postula uma identidade básica, uma unidade funcional entre o psíquico e o somático que tem como fontes a mesma energia, possibilitando a correspondência e mútua influência entre atitudes corporais e atitudes psíquicas e emocionais.

Propõe uma abordagem psicoterapêutica que inclui uma intervenção corporal como recurso para a liberação da energia psíquica das couraças caracteriológicas. Através da análise do caráter e do trabalho sobre as couraças musculares, visa a liberação de emoções reprimidas, de modo a resgatar o movimento expressivo.

O ser vivo se expressa através do movimento, uma característica inerente à vida. A biopatia humana é resultante de um somatório de todas as distorções dos modos naturais de expressão do organismo vivo, distorções geradoras de estados patológicos.

Os temas e problemas do paciente são percebidos de modo a focalizar o comprometimento da expressão emocional de seu corpo, tentando apreender seus significados. O indivíduo encouraçado é incapaz de dissolver, por si, suas próprias couraças, sendo também incapaz de expressar suas emoções biológicas primárias.

Segundo Reich, a couraça muscular tem uma disposição segmentada em sete anéis perpendiculares à coluna. São os segmentos: ocular, oral, do pescoço, torácico, diafragmático, abdominal e pélvico. O trabalho para a diluição das couraças é feito de cima para baixo, acompanhando o deslocamento energético que é efetuado ao longo do desenvolvimento maturacional do ser humano.

Os segmentos da couraça compreendem todos os grupos de órgãos e músculos em recíproco contato funcional que podem induzir-se mutuamente ao participarem de um movimento expressivo. A diluição do encouraçamento põe em liberdade estes movimentos e as correntes plasmáticas internas.

Reich desenvolveu sua prática somática no interior de seu trabalho analítico. Considerava que muitas vezes a linguagem verbal funcionava mais como defesa, obscurecendo a linguagem expressiva do núcleo biológico. A qualidade vital no ser opera de forma autônoma, para além dos domínios da linguagem, do intelecto, da vontade.

Em sua perspectiva, o soma influencia a psique, assim como a psique condiciona o soma. A intensidade de uma idéia psíquica depende da excitação somática a ela associada. A emoção tem origem no campo somático. A psique é determinada pela qualidade das idéias, desejos, enquanto o soma, pela quantidade de energia em ação.

A energia biológica governa tanto o psíquico quanto o somático. Há uma unidade fundamental, assim como há uma antítese, como representado no diagrama abaixo:

* Antítese psicossomática

* Identidade psicossomática

Fonte de energia biológica

Para Reich, a incapacidade ou limitação do movimento expressivo, da pulsação do organismo, ocasionada como decorrência da retenção e da estase da energia sexual, produz a impotência orgástica e dela surgem as biopatias. A tarefa terapêutica constitui-se em dissolver as couraças, restabelecer  a mobilidade pulsional, extinguir as atitudes retentivas, possibilitando a irrupção do reflexo do orgasmo, a entrega por completo às sensações orgânicas e às pulsações involuntárias.

A enfermidade psíquica está diretamente relacionada à perturbação genital que constitui a fonte de energia dos sintomas neuróticos. Esta fonte de energia da neurose, seu cerne somático, é a energia sexual reprimida. A possibilidade de cura passa por restabelecer a capacidade para a satisfação sexual plena, a potência orgástica.

“Potência orgástica é a capacidade  para abandonar-se, livre de quaisquer inibições, ao fluxo da energia biológica: a capacidade de descarregar completamente a excitação sexual reprimida, por meio de involuntárias e agradáveis convulsões no corpo.”

A restauração da potência orgástica tem para a abordagem reichiana uma significação equivalente à superação do complexo de Édipo para a psicanálise.

Há uma antítese fundamental entre a sexualidade, enquanto processo somático, e a angústia, de natureza psíquica. Assim, o conflito psíquico e a estase da excitação somática alimentam-se mutuamente. O conflito psíquico central está relacionado às fantasias sexuais infantis e a configuração particular do complexo de Édipo, presentes em toda neurose. A estase da excitação sexual é o fator sempre simultâneo, que não contribui para o conteúdo da neurose, mas lhe fornece energia.

Quando a satisfação orgástica é experimentada no presente real, as fixações infantis perdem a sua força, pois elimina-se a estase que é sua fonte de energia. Assim, dependendo do grau de energia sexual descarregada, o complexo de Édipo tende a realizar sua resolução, ou torna-se patológico.

2.2 – A vegetoterapia:

Esta abordagem baseia-se na utilização sistemática de intervenções específicas sobre os sete anéis da couraça. Elaborados por Reich, os actings foram sistematizados por Ola Raknes – ele que provinha da psicanálise dos anos 30. Federico Navarro foi responsável pelo seu desenvolvimento, divulgação e formalização enquanto projeto terapêutico da vegetoterapia.

Os actings são como um instrumento da técnica e da prática psicoterapêutica, de origens diversas incluindo desde o yoga e a oftalmologia (via Baker) até a observação de bebês na psicanálise. Cada acting tem um significado específico, busca reeditar aspectos da condição arcaica da formação do ser humano na 1a infância. Atua nesta direção estimulando o movimento pulsional, paralisado ou comprometido, a re-expressar-se.

A fase intra-uterina e o primeiro ano de vida (fase oral) são fundamentais em termos da somato-psicodinâmica. A fase oral é centrada na relação com a figura materna. Os núcleos psicóticos (melancólico, depressivo, paranóide) são formados nesta fase originária, que engloba a gestação, a vida intra-uterina, o nascimento e o primeiro ano de vida (entre os 9 e 12 meses).

Há uma correspondência entre estes núcleos e os desequilíbrios da musculatura lisa, regulada pelo sistema vegetativo, enervado pelo sistema nervoso autônomo, através do simpático e do parassimpático. A couraça tissular, visceral, é uma primeira defesa contra os núcleos psicóticos. O arcaico predominante é o visceral: a respiração, circulação, excreção, o sistema neuro-endócrino e neuro-vegetativo.

Podemos dizer que na vida intra-uterina prevalece o aparato neuro-endócrino, após o nascimento passa a predominar o funcionamento neuro-vegetativo e, só mais tarde, o neuro-muscular. O que importa ao bebê são as necessidades viscerais. O que vai para a psique provém dos estados neuro-vegetativos, do funcionamento visceral (de aparelhos e orgãos).

A estrutura caracterológica constitui-se assim refletindo a estrutura endo-psíquica ligada à fase pulsional. A estrutura endopsíquica está relacionada à imagem predominante na psique do indivíduo em relação a si mesmo e ao mundo, em correspondência com os núcleos psicóticos e suas defesas.

O percurso de mobilização do acting é diferente do acesso pela interpretação. Os actings são propostos enquanto re-vivências – reedições de movimentos pulsionais orgânicos comprometidos. A dissolução das defesas primárias é realizada através do estímulo a movimentos pulsionais localizados.

O acting não age isoladamente, trabalha-se com o paciente através dele. É possível que seja necessário esperar um longo tempo para iniciar os trabalhos com os actings. O fundamental é perceber a dinâmica e o momento de cada um, adequando-se ao ritmo próprio da relação que se constitui na vivência interativa entre cliente e terapeuta. Para se ter uma modificação estrutural, é importante trabalhar o indivíduo como um todo, na sua estrutura. Para a vegetoterapia, ao restringir as intervenções somáticas a trabalhos sobre a musculatura, algumas abordagens não atingem o núcleo psicótico, só as defesas.

Cada acting deve ser repetido em sucessivas sessões, até que o quadro clínico apresente alguma alteração. Esta avaliação deve se dar a partir da alteração do material trazido (fatos, sentimentos, sensações) entre uma sessão e outra e não restringir-se ao que é partilhado logo após o acting. É importante estar atento, além da reação ao acting, aos sonhos, ao estado emocional, à conduta. Na dúvida, é preferível continuar trabalhando no mesmo acting, antes de avançar na seqüência estabelecida.

Esta seqüência corresponde ao trajeto psico-afetivo e energético das etapas do desenvolvimento humano. Quanto mais arcaico o movimento pulsional, mais ele é vivido como responsável pela sobrevivência. Um estresse intenso no período fetal pode atingir e deixar seqüelas no indivíduo como um todo. É importante ter em conta que o estresse afeta mais o sistema neuro-vegetativo que o neuro-muscular.

Os primeiros actings, relacionados aos segmentos ocular e oral, são fundamentais, já que reeditam o vínculo com a mãe, eixo da relação simbiótica. Através do recurso da lanterna, a luz fora é internalizada como luz dentro.

Se as condições de vínculo são satisfeitas, aos poucos vai se tornando possível a discriminação. A formação do eixo interno, vertical, é uma introjeção do eixo horizontal com a mãe. É neste sentido que o acting do segmento ocular torna-se curativo, criando possibilidades de reestruturação interna.

O eixo é condição da separação. A relação é simbiótica enquanto o vínculo substitui o eixo. Quando ela passa a confirmá-lo, é sinal que a relação foi satisfatória: acolheu o desenvolvimento do ser da criança, ou houve uma reparação na vivência terapêutica do adulto.

O trabalho sobre a musculatura estriada, a partir do 3o segmento (do pescoço) atua sobre as defesas secundárias; se for precipitado, pode ocorrer ou o reforço destas defesas, ou a sua quebra, ocasionando um surto psicótico (com um paciente próximo a um surto, é fundamental a aliança terapêutica com o verdadeiro self, atuando como ego auxiliar para não romper uma defesa já tênue).

As condições de muscularidade permitem que se trabalhe tanto no nível sensório-perceptivo quanto com a mobilidade (na fase oral o bebê calca sua experiência mais na motilidade da musculatura lisa do que na mobilidade da musculatura estriada esquelética).

Ao trabalhar com as defesas é muito importante observar as reações durante a sessão, já que a ação da musculatura voluntária encontra-se acessível à consciência. No nível visceral, trabalhando os núcleos psicóticos inconscientes, a observação mais significativa é no intervalo entre as sessões.

Os segmentos diafragmático, abdominal e pélvico compõem elementos da afirmação da própria identidade, etapa final de um longo percurso, que organicamente se complementa na puberdade, momento de maturação das funções sexuais, as últimas a se desenvolverem, consolidando a identidade sexual, masculina ou feminina.

3 – As abordagens neo-reichianas :

Estas abordagens trazem influências significativas dos movimentos existencial e humanista, da psicanálise e embasam-se em desenvolvimentos de aspectos da obra de Reich. Das abordagens descritas abaixo, a bioenergética é a que mais enfatiza o referencial psicanalítico, valorizando os aspectos inconscientes, o manejo da transferência e a interpretação da resistência. No pólo mais afastado desta e mais imbricado com o existencialismo está a psicologia formativa de Stanley Keleman.

De toda forma, um dos aspectos mais enfatizados por todas estas abordagens é o caráter vivencial do aprendizado, seguindo a linha existencial de valorização da experiência vivida.

3.1 – Análise Bioenergética:

A análise bioenergética foi sistematizada por Alexander Lowen e John Pierrakos, a partir do trabalho de Reich, de quem Lowen foi aluno e cliente. Ele concentrou seu interesse na relação funcional do caráter com a atitude corporal, a couraça muscular que tem a função de proteger o indivíduo de experiências emocionais e impulsos considerados dolorosos ou ameaçadores, provenientes de sua própria personalidade ou do mundo exterior.

A tese de Merleau-Ponty é mais uma vez referendada: cada pessoa é seu próprio corpo, nele está impressa toda a história psicológica do sujeito, nele se revela sua psicodinâmica. Um corpo que traz a memória de emoções e sentimentos, muitos dos quais reprimidos a nível consciente. A psicodinâmica, tendo uma correspondência corporal, possibilita uma interpretação que parte da leitura do corpo, da expressividade de seus movimentos, procurando analisar e elaborar o significado das tensões musculares crônicas.

A análise bioenergética pode ser considerada, dentre as abordagens neo-reichianas, aquela que mais busca apoio e respaldo na teoria psicanalítica, dando ênfase ao manejo dos processos transferenciais e à interpretação da resistência. Neste sentido, propõe-se conjugar o trabalho corporal que busca propiciar um contato maior com o próprio corpo, sensações,  sentimentos e conteúdos de memória; com o processo analítico, que tenta elaborar estes conteúdos tendo como referência a história do sujeito. É através de vivências que se permite “relembrar, repetir, elaborar”.

Percebendo o organismo enquanto unidade comunicante, tenta-se captar qual a sua forma de ser e estar no mundo, como se protege, qual sua capacidade de contactar e expressar suas emoções, e como estas singularidades articulam-se com esta história de vida. Uma das tarefas da psicoterapia em análise bioenergética seria resgatar essas memórias, poder expressar os sentimentos a elas vinculados e integrar seu conteúdo à personalidade.

“A análise bioenergética trata fundamentalmente de cuidar dos vínculos e do contato, e portanto dos afetos (…) Através da leitura corporal e da compreensão da história individual, devemos perceber como esse paciente vive, age, sente, se defende, seu estar no mundo. Partindo de exercícios de respiração ou movimentos específicos, utilizando pois o sensório, bem como a percepção interna como ponto de identidade, de identificação de si, trazemos aqueles temas para o aqui e agora, procurando que o corpo volte a ter sua espontaneidade original perdida, com suas expressões adequadas de sentimentos, de pensamentos através da fala e de movimentos através da ação.”

Lowen circunscreve a ênfase reichiana na sexualidade:

“A sexualidade foi e é a chave de todos os problemas emocionais, mas os distúrbios de funcionamento sexual só podem ser compreendidos, de um lado, a partir da estrutura total da personalidade e, de outro, dentro da estrutura das condições da vida social. (…) não existe apenas uma saída que desvende todos os mistérios da condição humana. (…) penso em termos de polaridades e de seus inevitáveis conflitos e soluções temporárias. Uma visão da personalidade que vê o sexo como única chave para a personalidade é por demais restrita, mas ignorar o papel do sexo na determinação da personalidade do indivíduo é desprezar uma das mais importantes forças da natureza”. [14]

Para ele, a maior contribuição de Reich foi o estatuto que deu ao corpo em sua teoria da personalidade. [15]

Em sua abordagem, Lowen propõe uma alternância entre a mobilização e estimulação da agressividade do sujeito, facilitando o contato e a entrega aos seus sentimentos sexuais; e uma atitude de entrega, propiciando o contato com sentimentos de tristeza e raiva, dor e frustração experimentados no próprio corpo, carregado de sentidos e imagens, de memórias e histórias.

Trabalhando com seu próprio corpo, desenvolveu as posições e exercícios básicos que propiciavam um maior contato com o corpo e sua vitalidade:

“Desenvolvi a técnica de experimentar com meu próprio corpo tudo que pedia a meus pacientes, (…) não acredito que possamos fazer pelos outros o que não podemos fazer por nós mesmos”.

Foi assim que chegou à postura e ao conceito de grounding, que tornou-se uma característica da abordagem bioenergética: a vitalidade das pernas, a entrega da cabeça, a respiração profunda, a sensação de proximidade com o solo; o contato com a realidade, tempo e espaço em que se situa, com o seu corpo e sua sexualidade. “A vida de um indivíduo é a vida de seu corpo.”

“No grounding, encontramos o nosso esqueleto e com ele o arcabouço de sustentação da bacia com os membros inferiores. Para identificar-se com seu próprio corpo, com sua animalidade, tomar posse de sua sexualidade e orientar-se para o prazer, é preciso que a pessoa esteja com os pés no chão, tendo seu lugar, sendo alguém. (…) não apenas como metáfora psicológica mas fundamentalmente como ancoragem concreta do self. (…)

grounding se aprende brincando, através de uma relação, com o útero, com o colo, consigo, com Gaia, com o outro. O grounding é auto-possessão. (…) é a base do prazer, da graciosidade, do contentamento e do orgasmo. (…) representa nossas raízes. A base do passado em que se apoia o presente para dar o salto para o futuro. (…) é o conjunto de nossas crenças, valores, princípios, background genético, raça e base cultural. (…) é formador do núcleo de confiança básica.” 

Nesta pesquisa através do próprio corpo, a bioenergética utiliza recursos no sentido de um reencontro com o corpo, sua vitalidade, sua sexualidade, respiração, movimento, sentimento, auto-expressão. “O prazer e a satisfação são o resultado imediato das experiências de auto-expressão.” Através de processos de carga e descarga, procura-se “aumentar o nível de energia do indivíduo, liberar sua auto-expressão e restaurar o fluxo de sentimentos do seu corpo (…) a ênfase é dada sempre à respiração, ao sentimento e ao movimento, aliada à tentativa de relacionar o funcionamento energético atual do indivíduo com a história de sua vida”.

Nesta pesquisa através do próprio corpo, a bioenergética utiliza recursos no sentido de um reencontro com o corpo, sua vitalidade, sua sexualidade, respiração, movimento, sentimento, auto-expressão. “O prazer e a satisfação são o resultado imediato das experiências de auto-expressão.” Através de processos de carga e descarga, procura-se “aumentar o nível de energia do indivíduo, liberar sua auto-expressão e restaurar o fluxo de sentimentos do seu corpo (…) a ênfase é dada sempre à respiração, ao sentimento e ao movimento, aliada à tentativa de relacionar o funcionamento energético atual do indivíduo com a história de sua vida”.

Nesta elaboração emergem as forças e conflitos internos que impedem o indivíduo de poder contar com todo o seu potencial energético. A resolução destes conflitos permite um aumento do nível de energia disponível para a sua realização, de seu prazer e satisfação.

Para Lowen, a psicanálise apresenta uma precariedade em sua técnica, ao não considerar o corpo diante dos conflitos psíquicos e emocionais. A palavras e as idéias são insuficientes para promover a transformação necessária, limitando-se muitas vezes à um auto-conhecimento intelectual.

“O conhecimento se torna  compreensão quando aliado ao sentimento. Apenas uma profunda compreensão, aliada a um forte sentimento, é capaz de modificar padrões estruturados de comportamento.”

Ter consciência do próprio corpo seria, assim, a única maneira de realmente descobrir quem se é. Muitas vezes, o medo impede de percebermos ou experimentarmos determinados sentimentos que, por tornarem-se ameaçadores, passam a ser suprimidos, através de tensões musculares crônicas que impedem o fluxo de sensações e movimentos.

Esta supressão dos sentimentos diminui a sensibilidade e responsividade do corpo, assim como a capacidade de concentração mental:

“nossas mentes estão basicamente preocupadas com a necessidade de ter controle às custas de ser e estar cada vez mais vivo. (…) A vida do corpo é sentimento: sentir-se vivo, vibrante, bem, excitado, furioso, triste, alegre e, finalmente, contente. É a falta de sentimentos ou a confusão acerca deles que traz as pessoas à terapia”.

O objetivo da terapia bioenergética é conjugar a promoção da auto-expressão, da sexualidade e vitalidade da pessoa, ao mesmo tempo, incentivá-las a abdicar do poder e controle sobre o seu corpo em prol da graça, da espontaneidade e da espiritualidade do corpo.

Este processo só pode se dar através de um suporte relacional pois o estabelecimento do vínculo é fundamental. A psicanálise parte do presente para o passado, da periferia para o centro. Na abordagem da análise bioenergética o encaminhamento é similar, através do trabalho a partir do emergente.

3.2 – Biossíntese:

A biossíntese é um método de psicologia somática desenvolvido por David Boadella a partir dos trabalhos de Reich e dos neo-reichianos Alexander Lowen (bioenergética) e Gerda Boysen (biodinâmica); do processo formativo e a anatomia emocional de Stanley Keleman; da abordagem da experiência pré-natal de Francis Mott e Otto Rank; e dos estudos de Frank Lake sobre a relação mãe-filho, a partir de Melanie Klein.

A biossíntese parte da existência de três correntes fundamentais no corpo humano, associadas às três camadas de células germinativas que diferenciam-se ao longo do desenvolvimento fetal, dando origem aos distintos sistemas de órgãos.  

A camada mais interna, o endoderma, que origina as vísceras e os órgãos dos aparelhos digestivo e respiratório, recebe os fluxos da vida emocional no interior do organismo. O mesoderma, que toma a forma de ossos, músculos e sangue, é a camada por onde se expressam os fluxos de movimentos. O ectoderma, que vai gerar a pele, os órgãos sensitivos, o cérebro e os nervos, é o caminho dos fluxos perceptivos, de pensamentos e imagens que transitam pelo sistema nervoso e sensorial.

É comum que os conflitos entre as necessidades do indivíduo e as exigências do mundo externo desequilibrem o organismo, alterando a integração funcional destas três camadas e criando desconexões entre movimento, sentimento, percepção e  pensamento.

Estas desconexões têm uma correspondência somática: entre a cabeça (percepção e pensamento) e a coluna (movimento), a nuca seria um ponto de interligação; entre a cabeça e o tronco (sentimento), a garganta; e entre a coluna e os órgãos internos (emoção), o diafragma.

O trabalho terapêutico está voltado para a reintegração destas camadas, órgãos e funções, através do reequilíbrio da respiração e do centramento emocional; do balanceamento do tônus muscular e no enraizamento da pessoa; do aprimoramento da capacidade de lidar com as experiências vividas, pelo contato e comunicação.

A este trabalho de integração entre ação, sentimento e pensamento (considerado como outer ground), junta-se o trabalho a nível do inner ground, da expressão essencial da pessoa,

“reconhecendo que o trabalho psicossomático abre conexões para além do físico, e que o desenvolvimento espiritual é impossível sem que antes se trabalhe os bloqueios somáticos e as distorções caracterológicas do falso self.

Em sua aproximação embriológica ao caráter, Boadella sugere a existência de uma primeira zona erógena, correspondente à fase intra-uterina: a totalidade da superfície do corpo, que obviamente continua a se destacar durante a primeira infância.

“Este precoce período de desenvolvimento, ainda mais importante que o oral em seu poder de formar ou interromper o sentido primário da identidade (…) os olhos, o nariz e as orelhas são extensões sensoriais especiais da pele, e são cruciais na formação de limites.”

A finalidade da terapia não deve ser acabar com os padrões defensivos, fixados pela couraça caracterológica. Ficar sem defesas seria reduzir as chances de sobrevivência. O objetivo é poder usar suas defesas a seu favor, como, quando e onde precisar.

É importante destacar que, para a biossíntese, os acontecimentos traumáticos que marcam a origem dos problemas emocionais é retardado do princípio da linguagem (como na perspectiva psicanalítica), passando pelo primeiro ano de vida (Melanie Klein), para se defrontar com a vida intra-uterina e neo-natal (Frank Lake e Otto Rank): “a recepção recebida do mundo pós-natal gera em nós uma ressonância à nossa adoção pelo nosso mundo pré-natal”.

O afeto da pele fetal, descrito por Mott, mostra a sensibilidade do feto às sensações de tensão e desconforto da mãe, que podem ser comunicadas em algum nível, assim como sentimentos de rejeição, culpa ou hostilidade. O feto é sensível tanto aos distúrbios de sua existência (pressões mecânicas, sons agudos, vibrações intensas) quanto àqueles que atingem inicialmente a mãe.

O nascimento, por sua vez, é um acontecimento que pode determinar profundas características da personalidade. Pelo menos quatro transições distintas podem ser vivenciadas como expansão agradável ou como choque catastrófico. A primeira é a transição sensorial: da escuridão para a luz, dos sons diluídos pelo amortecimento dos líquidos aos que atingem diretamente o tímpano, a diferença de temperatura é efetiva e os processos que a regulam tardam a se tornarem eficientes, fazendo com que as primeiras experiências de contato da pele sejam marcantes.

A segunda transição é circulatória e respiratória. Se o cordão umbilical não for cortado antecipadamente, antes de parar de pulsar, haverá um duplo choque. Caso contrário esta transição poderá ser menos traumática.

A terceira transição é gravitacional: a sensação de gravidade, sem um suporte seguro, relaciona-se com a experiência de queda.

“O medo de cair leva a uma contração do organismo, ao \’congelamento\’ das sensações fluidas e das correntes agradáveis do corpo, e imprime na criança reflexos primitivos de susto, que são a base de todos os padrões neuróticos de tensão.”

A quarta transição importante é a alimentar: se o bebê recebe uma amamentação satisfatória demonstrará uma resposta corporal plena, o reflexo de sugar transforma-se em tremores por todo o corpo, tal como um “orgasmo oral”. “A união com o seio é um processo ativo e receptivo – capaz de assentar a base para os contatos da vida futura.”

“Se o enraizamento básico de uma pessoa no mundo é traumatizante, de forma que os órgãos de contato se expandem hesitantemente, a base de segurança no mundo, o próprio corpo ou o corpo de outros, é prejudicada, enfraquecida ou destruída. (…) Antes do nascimento da linguagem, antes que qualquer palavra seja proferida, o senso básico de identidade, ou a falta dele, já está formado. Ele flui da matriz das pulsações umbilicais, que cessam quando o cordão é cortado e são substituídas pelos ritmos da respiração e da amamentação. Ele surge através do contato da pele com outra pele, que substitui o movimento do líquido uterino (…) nasce dos movimentos espontâneos do corpo, (…) é moldado pela tensão e pelo relaxamento dos músculos em resposta à gravidade.”

3.3 – Biodinâmica:

A psicologia biodinâmica de Gerda Boyesen desloca o trabalho sobre as couraças musculares, privilegiando intervenções suaves sobre a couraça visceral. Parte do ponto de vista de que é possível dissolver a neurose trabalhando diretamente sobre o corpo, de modo a influenciar o sistema vegetativo. Para ela, o ser humano vivencia um ciclo periódico de carga – expressão – descarga – descanso.

Completar o ciclo permite um descanso profundo, auto-regulador e auto-regenerador. A neurose constitui-se exatamente num bloqueio em determinado ponto deste ciclo, que através das tensões cotidianas, torna-se cada vez mais limitado. E são os resíduos destas tensões bloqueadas e não dissolvidas que formam a couraça visceral, a energia estagnada acumula fluidos e substâncias químicas: “fluido atrai energia e energia atrai fluido. (…) sempre que existiam sintomas nervosos ou psicossomáticos, existia excesso de fluido“. [29]

O recurso fundamental da terapia biodinâmica é a massagem. Através de toques ritmados e sutis, procura-se estimular a atividade peristáltica, responsável pela digestão dos alimentos e, para Boyesen, também pela digestão das tensões emocionais acumuladas. Há vários tipos de técnicas de massagem, cada uma com indicação específica, dependendo da fase do ciclo em que a pessoa se encontra, sua estrutura egóica e caracterológica e seu momento no processo terapêutico.

Através da relação terapêutica, busca-se contatar a personalidade primária do cliente, um contato com seu eu essencial ou profundo, a partir do qual poderá se desenvolver enquanto pessoa. A meta é acompanhar o cliente em sua própria jornada de auto-conhecimento e crescimento: “a personalidade primária dirige-se à plenitude atualizando o que é potencial”.

A massagem é efetuada tendo como instrumento acessório, um estetoscópio, de modo a acompanhar a evolução dos sons peristálticos que conformam uma verdadeira linguagem para os terapeutas desta abordagem. Através do contato com a pele, procura-se estimular a digestão, a respiração, a circulação, visando atingir um equilíbrio entre os sistemas simpático e parassimpático.

Ativando a peristalse, que Gerda denomina psicoperistalse, busca-se alcançar um estado de profundo bem-estar e prazer consigo mesmo, de sentir-se vivo. Este estado desarma a necessidade da defesa neurótica, desmanchando a couraça. Deveria ser um estado alcançável normalmente através do descanso e do sono, mas o acúmulo de tensões formando as couraças torna mais complexa esta atividade auto-regeneradora que passa a necessitar de um impulso desbloqueador.

“Compreendi que não há nada mais primitivo do que o canal alimentar. Pareceu-me natural que o tubo digestivo estivesse em primeiro lugar, o lugar privilegiado da circulação da energia instintual. (…) Há quatro vias de descarga no canal alimentar, que é também o canal primitivo de circulação da energia instintual. Duas vias ascendentes, que são a reação emocional pelo grito (via forte) e a palavra (via suave); e duas vias de descarga descendentes, uma sendo a diarréia (via forte) e a outra… (… o organismo) tem seu próprio mecanismo de regulação e de eliminação da tensão nervosa: o psicoperistaltismo. O canal instintual, emocional, o canal do \’isto\’ é também a via da dissolução, do derretimento da energia emocional.

(…)Descobri que o corpo tem seu próprio mecanismo natural de eliminação e de regulação. O psicoperistaltismo tem como função dissolver e eliminar a tensão nervosa. (…) um mecanismo funcionando de maneira totalmente automática para eliminar os resíduos do estresse.

(…) o peristaltismo acompanhava o movimento interior de prazer, de contentamento consigo, de gratificação e de realização de si. Descobri que havia dois tipos de tensão que podiam impedir o bom funcionamento do peristaltismo: o primeiro tipo era concernente aos múltiplos conflitos antigos recalcados, e o segundo, aos efeitos do estresse cotidiano sobre o organismo. Na terapia, nós praticávamos principalmente a massagem e desencadeávamos o psicoperistaltismo de modo a eliminar os antigos conflitos. A auto-regulação consiste na prática diária da abertura do peristaltismo que permite dissolver as tensões do dia.”

3.4 – Psicologia Formativa:

Stanley Keleman enfatiza que sua formulação baseia-se na experiência vivenciada e não num constructo teórico de idéias. Procura pensar o ser humano, o corpo, como um processo contínuo de eventos seqüenciais, organizado no tempo.

Para Keleman, não existe a transferência, o que existe é a relação real, pessoa a pessoa. Em Realidade somática [33] , explicita a grande influência que o existencialismo e a fenomenologia tiveram sobre ele – através de autores tais como Bergson, Heidegger, Merleau-Ponty, valorizando o contato imediato com o real -, além da visão energética e biológica.

Não existe uma dualidade entre mente e corpo. Este é apenas um conceito, não ainda uma experiência. Importa se perguntar como vivemos e experienciamos a vida no corpo e não como esta é descrita pela mente.

O processo formativo é a possibilidade que temos de organizar um corpo herdado, na tarefa de torná-lo um corpo pessoal, adaptando-o à própria existência. A condição humana transcende a herança biológica, o tipo constitucional, assim como o determinismo social. É o modo de lidar com estes dois pólos que caracteriza a pessoalidade. Como meu corpo torna-se a expressão individual de quem sou, e esta é uma possibilidade volitiva. Corpar é dar corpo à, criar seu corpo pessoal, sua identidade e subjetividade somática de dentro para fora.

O foco é na forma, e forma é função. Um resgate do biológico, constitucional, não determinante mas condicionante e relacional. É a forma que gera os padrões de pensar, agir, sentir. Por isso, evoca-se sempre a forma, o modo de organização da experiência, e não o sentimento, o pensamento, as lembranças.

Não basta trabalharmos nos níveis muscular e emocional; precisamos modificar padrões e, para isto, é necessário rearticular as camadas superiores e inferiores do córtex, de modo a contatar as formas de organização da estrutura, padrões de conduta, afetivos e cognitivos. Só assim poder-se-á perceber quais os caminhos de organização – e, portanto, os de desorganização também – de modo a poder formar, des-formar e re-formar as formas que foram sendo organizadas, consciente e inconscientemente, ao longo da vida.

“Realidade somática nos mostra que organizações somáticas são formas corporais, padrões de organização corporal. A forma corporal sendo construída por afetos, percepções e imagens é geradora destes simultaneamente. A forma corporal moldada pela experiência e geradora de experiência condensa fluxos naturais e sociais por período variados. A forma corporal gera estilos de vida e é gerada por estes, acompanhando o ritmo dos múltiplos corpos que se sucedem num continuum ao longo de nossa vida.

(…) Keleman nos independentiza das categorias freudianas, abrindo-nos a possibilidade de perguntarmos sempre “como?” diante dos processos e nunca “por quê?”.

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